2013: O Espaço entre Histórias

Toda cultura tem uma História de seu Povo para dar sentido ao mundo. Em parte consciente e em parte inconsciente, ela consiste numa matriz de concordâncias, narrativas e símbolos que nos dizem porque estamos aqui, para onde estamos indo, o que é importante, e até mesmo o que é real. Penso que estamos entrando em uma nova fase da dissolução da nossa História de um Povo, e logo, com um pouco de atraso, do edifício da civilização construída no topo desta história.

Às vezes eu sinto uma imensa nostalgia pela mitologia cultural da minha juventude, um mundo em que não havia nada errado com os refrigerantes, e no qual o campeonato de futebol era importante. Um mundo no qual a maior democracia do globo estava levando democracia ao resto do planeta, e no qual a ciência estava caminhando para tornar a vida cada vez melhor. A vida fazia sentido. Se você trabalhasse duro poderia conseguir boas notas, entrar numa boa faculdade, seguir algum caminho profissional, e você seria feliz. Com algumas exceções desventuradas, você seria bem sucedido se obedecesse as regras da sociedade: se você seguisse o mais recente conselho médico, se você se mantivesse informado lendo o jornal, e se ficasse longe das Coisas Ruins, como as drogas. Claro que haviam problemas, mas os cientistas e experts estavam trabalhando duramente para consertá-los. Logo, um novo avanço médico, uma nova lei ou uma nova técnica educativa iriam propelir a melhoria da vida. As minhas percepções de infância eram parte desta História de um Povo, na qual a humanidade estava destinada a criar um mundo perfeito através da ciência, razão e tecnologia, da conquista da natureza, da transcendência de nossas origens animais, e da engenharia de uma sociedade racional.

Da minha perspectiva, as premissas básicas desta história pareciam inquestionáveis. Afinal, elas pareciam estar funcionando no meu mundo. Olhando para trás, eu percebo que este era um mundo-bolha construído em cima de massivo sofrimento humano e degradação ambiental, mas na época era possível viver dentro desta bolha sem precisar enganar a si mesmo. A história que nos cercava era robusta. Ela conseguia manter com facilidade os dados anômalos às margens.

Desde a minha infância, nos anos 70, esta história tem erodido em velocidade acelerada. Mais e mais pessoas no Ocidente não acreditam mais que a civilização esteja fundamentalmente nos trilhos. Mesmo os que ainda não questionam as premissas básicas de forma explícita parecem sentir o seu desgaste. Uma camada de cinismo e uma consciência hipster de si próprio têm calado nossas intenções mais sérias. O que um dia foi tão real, diz uma placa no comício de um partido, hoje é visto através de diversas camadas de “meta-filtros”, para traçar uma análise em termos de imagem e mensagem. Nós somos como crianças que cresceram pra fora de uma história que antes nos fascinava, cientes agora de que se trata apenas de uma história.

Ao mesmo tempo, uma série de novos dados têm rachado a história por fora. O aproveitamento dos combustíveis fósseis, o milagre dos produtos químicos para transformar a agricultura, os métodos da engenharia social e da ciência política para se criar uma sociedade mais racional e justa… cada um deles falhou em sua promessa, e trouxe consequências imprevisíveis que ameaçam a civilização. Nós simplesmente não podemos mais acreditar que os cientistas tem tudo redondinho em suas mãos. Tampouco podemos acreditar que a marcha progressiva da razão irá trazer uma utopia social.

Hoje, nós não podemos ignorar a degradação intensificada da biosfera, o mal-estar do sistema econômico, o declínio na saúde, ou a persistência e inclusive o crescimento da pobreza e desigualdade no mundo. Nós antes acreditávamos que os economistas iriam consertar a pobreza, os cientistas políticos iriam consertar as injustiças sociais, os químicos e biólogos iriam consertar os problemas ambientais, e o poder da razão iria prevalecer e nós adotaríamos políticas sadias. Eu me recordo de olhar para mapas do declínio das florestas tropicais na National Geographic no início dos anos 80 e sentir ao mesmo tempo alerta e alívio – alívio porque pelo menos os cientistas e todo mundo que lia a National Geographic estavam cientes do problema agora, então algo com certeza seria feito.

Nada foi feito. O declínio das florestas tropicais se acelerou, junto de quase todas as outras ameaças ambientais que conhecíamos em 1980. Nossa História de um Povo foi sendo empurrada adiante sob o momentum dos séculos, mas, a cada década que passou, o esvaziamento de seu núcleo – que provavelmente começou com a matança em escala industrial da Primeira Guerra Mundial – foi-se ampliando. Quando eu era criança, nosso sistema de ideologia e a mídia ainda protegiam esta história, mas nos últimos trinta anos as incursões da realidade dentro dela têm perfurado sua casca protetora e rompido com sua infraestrutura essencial. Nós não acreditamos mais em nossos contadores de histórias: nossas elites. Nós não acreditamos nos políticos, não acreditamos nos médicos, não acreditamos nos professores, não acreditamos nos banqueiros, não acreditamos nos tecnólogos. Todos sugerem que está tudo sob controle, e nós sabemos que não está. Nós perdemos a visão de futuro que outrora possuíamos; e a maioria das pessoas não tem sequer uma visão de futuro qualquer hoje. Isto é uma novidade para a nossa sociedade. Cinquenta ou cem anos atrás, a maioria das pessoas concordava em termos gerais quanto ao delineamento para o futuro. Nós achávamos que sabíamos para onde a sociedade estava caminhando. Mesmo os marxistas e capitalistas concordavam com as linhas básicas: um paraíso de lazer mecanizado e harmonia social cientificamente arquitetada, com a espiritualidade completamente abolida ou relegada a um canto da vida sem consequências para a vida material, que aconteceria na maioria das vezes aos domingos. É claro que houveram dissidentes desta visão, mas este era o consenso geral.

Quando uma história se aproxima do seu fim, ela passa por espasmos de agonia e morte, uma semelhança exagerada com a vida. Então hoje nós vemos dominação, conquista, violência e separação levados a extremos absurdos que servem de espelho para o que antes estava escondido e difuso. O ano de 2012 terminou exatamente com este tipo potente de evento rompedor de histórias: o massacre de Sandy Hook. Mesmo sabendo que muitas mais crianças igualmente inocentes foram mortas nos últimos anos por ataques de drones americanos, por exemplo, este acontecimento realmente penetrou fundo na minha pele. Ninguém estava imune. Eu penso que é porque sua completa falta de sentido penetrou em todos os mecanismos de defesa que temos para manter a ficção de que o mundo está basicamente ok. Diferente do 11 de Setembro ou de Oklahoma City, e certamente diferente dos horrores que acontecem mundo afora, não havia narrativa convincente para desviar a dor crua do que aconteceu. Nós não podemos fazer nada a não ser mapear aqueles inocentes assassinados nos rostos dos jovens que conhecemos, e a angústia de seus pais em nós mesmos. Na base da nossa História de um Povo está a separação: entre a humanidade e a natureza, entre eu e você, entre qualquer um e todos os demais, e este evento uniu todo mundo, de qualquer cultura, nacionalidade ou convicção política. Por um momento, todos sentimos exatamente a mesma coisa. Por pelo menos um instante, eu tenho certeza, a maioria das pessoas estiveram em contato com a simplicidade daquilo que é importante. Eu tenho certeza que a maioria das pessoas tiveram aquele sentimento instantâneo: “Não precisa ser tão difícil assim, se pudermos nos lembrar do que parece tão óbvio agora, que o amor é a única coisa que temos”. Nós humanos fizemos tal desordem das coisas, que esquecemos do amor. E é a mesma percepção que temos quando alguém que amamos está passando por um processo de morte, e pensamos: “Ah, como esta pessoa é especial, como pude não perceber isto antes? Por que eu não pude apreciar todos estes momentos que tivemos juntos? Todas as discussões e rancores parecem tão pequenos agora.”

Logo após aquele momento, é claro, as pessoas se apressaram pra tentar fazer sentido do evento, classificando-o dentro de uma narrativa sobre o controle de armas, saúde mental ou a segurança dos prédios escolares. Talvez eu estaja imaginando coisas, mas não acho que ninguém realmente acredite no fundo no fundo que estas respostas toquem no cerne da questão. A cultura de armas, nós sabemos, é o sintoma de algo muito mais profundo, e a violência que encontra expressão através das armas iria, mesmo sem elas, encontrar alguma outra forma de vir à tona. Doenças mentais também fazem parte de um problema tão vasto que é essencialmente insolúvel dentro do nosso sistema atual; e que também vem de uma fonte mais profunda. Quanto à segurança nas escolas, um ditado chinês descreve bem todas as medidas propostas: elas seguram o cavalheiro, mas não o vilão.

Ninguém ousaria dizer que Sandy Hook foi pior que o Holocausto, as chacinas stalinistas ou as guerras imperialistas dos séculos 20 e 21; mas foi menos compreensível. Por mais que tentemos, não conseguimos encaixar este evento na nossa História do Mundo. É o dado anômalo que desembaraça toda a narrativa – o mundo não faz mais sentido. Nós lutamos para explicar o que isto significa, mas nenhuma explicação satisfaz. Nós podemos seguir fingindo que o normal continua normal, mas este é um entre uma série de eventos do “fim dos tempos” que está desmantelando a mitologia de nossa cultura.

A evidente futilidade das respostas que somos capazes de imaginar também apontam para este profundo colapso ideológico. As respostas são todas sempre sobre “mais controle”. Só que o controle, como podemos ou não notar, é uma peça chave na velha história de uma humanidade emergindo por cima da natureza, impondo tecnologia e razão no mundo selvagem e nos seres humanos não-civilizados. E por toda a nossa volta nós vemos nossa tentativa de controle saindo pela culatra: guerras para lutar contra o terrorismo só provocam terrorismo, herbicidas criam superpragas, antibióticos criam supermicroorganismos, medicações psiquiátricas levam a irrupções explosivas de violência.

Olhando para trás, para as escolas comunitárias algumas gerações atrás, quando crianças e adultos podiam entrar e sair por qualquer porta, poderíamos dizer que a inexorável tendência de escolas-fortaleza em Estados-fortaleza seria algo que alguém desejaria? O mundo deveria estar melhorando. Nós deveríamos estar nos tornando mais ricos, mais sábios. A sociedade deveria estar avançando. Aqui estou eu, na América, na nação mais “avançada” do planeta, e ainda assim, mesmo que nossa riqueza financeira tenha dobrado e dobrado de novo em cinquenta anos, nós perdemos riqueza de uma forma mais básica. Por exemplo, o capital social de se sentir seguro, de se sentir em casa onde nós vivemos. Então seria mais segurança o melhor a que podemos aspirar? Que tal uma sociedade onde segurança não é igual à proteção? Que tal um mundo em que nenhum ser humano manuseia um rifle de assalto? Que tal um mundo em que nós conhecemos a maioria dos rostos e histórias das pessoas ao nosso redor? Que tal um mundo onde sabemos que nossas atividades diárias contribuem para a sanação da biosfera e o bem-estar das outras pessoas? Nós precisamos de uma História de um Povo que inclua todas estas coisas – e que não se pareça com uma fantasia.

Inúmeros pensadores visionários têm oferecido versões de tal história, mas nenhum deles ainda conseguiu uma verdadeira História de um Povo, um conjunto de concordâncias e narrativas que sejam aceitas largamente e dêem sentido ao mundo, e coordenem as atividades humanas em direção a sua realização. Nós ainda não estamos prontos pra tal história, porque a velha história, apesar de em frangalhos, ainda tem largas faixas de tecido intactas. E mesmo quando estas se desfiarem, nós ainda teremos que atravessar o espaço entre histórias, uma espécie de nudez. Nos tempos turbulentos que nos esperam, nossas maneiras familiares de agir, pensar e ser não mais farão sentido. Nós não saberemos o que está acontecendo, o que tudo isto significa e, às vezes, até mesmo o que é real. Algumas pessoas já entraram neste tempo.

Eu gostaria de dizer que já estou pronto para uma nova História de um Povo, mas mesmo que eu esteja entre os seus inúmeros tecedores, eu não posso ainda habitar completamente sua nova veste. Em outras palavras, ao descrever o mundo que poderia ser, algo dentro de mim duvida, rejeita, e por debaixo da dúvida há algo que dói. O colapso da velha história é um forma de cura, uma que descobre as velhas feridas escondidas por sob a malha e as expõem para a luz curativa da consciência. Tenho certeza que muitas pessoas que estão lendo este texto já passaram por algo parecido, quando o véu das ilusões veio ao chão:  todas as velhas justificativas, racionalizações, todas as velhas histórias. Eventos como Sandy Hook nos ajudam a iniciar este mesmo e velho processo em um nível coletivo. Da mesma forma, as supertempestades, a crise econômica, o ataque de fúria política… de uma forma ou de outra, a obsolescência de nosso velho mythos é exposta.

Nós ainda não temos uma nova história. Cada um de nós está ciente de alguns de seus filamentos; por exemplo na maioria do que chamamos de alternativo, holístico ou ecológico hoje. Aqui e lá nós vemos padrões, desenhos, partes emergentes deste tecido. Mas o novo mythos ainda não emergiu. Nós vamos ter que suportar um tempo no espaço entre histórias. Aqueles entre vocês que passaram por isto no nível pessoal sabem o quão precioso – e alguns podem até dizer sagrado – este tempo é. Assim nós entramos em contato com o real. Cada desastre desnuda o real por detrás de nossas histórias. O terror de uma criança, o pesar de uma mãe, a honestidade de não saber o por que. Em momentos como estes nós descobrimos nossa humanidade. Nós vamos em socorro ao outro, de humano para humano. Nós tomamos conta uns dos outros. É isto o que continua a acontecer toda vez que há uma calamidade, antes que as crenças, as ideologias e a política tomem conta novamente. Eventos como o de Sandy Hook, pelo menos por um instante, cortam através de tudo isto até o mais básico do ser humano. Em tempos assim, nós aprendemos quem realmente somos.

Como podemos nos preparar? Nós não podemos. Mas estamos sendo preparados.

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